Tinha Marina no Matheus. Tem Matheus na Marina.
No meu processo de identificação tenho resgatado velhos amigos, revisitado os retalhos que me compõem hoje enquanto Marina.
Ao longo da vida, somos chamadas de muitos nomes que não os que a nossa mãe escolhe. Dos apelidos carinhosamente encurtados, como Math, às profanidades ouvidas sem querer ao subir a escada rolante da República rumo à Consolação - “máquina de HIV” ele gritava para mim numa tarde há 2 ou 3 anos.
Para muita gente, nome é assim, coisa dada.
Nós somos nomeadas no coletivo. Travesti. Assim nos tornamos uma. Para o outro, sempre seremos uma. Conglomeradas como essa mesma “coisa”. Na despersonalização, tenho encontrado estranha força. Algo visceral, ao sermos postas como uma, compartilhamos entranhas ricas em conhecimentos e lições nunca lecionadas, apenas aprendidas. Somos postas como unidade há centenas de anos.
Travesti é sobrenome, corre nas veias, é herança inquestionável.
Ao longo desse processo de tornar-se, nos apossamos do que é nomear. Contudo, não é a primeira vez que esse corpo é renomeado. Fui Elisei muito antes de me reconhecer Matheus e muito menos transicionar enquanto Marina.
Nos meus primeiros anos de escola, ia de perua para a aula. Logo pela manhã, eu e minha irmã, desde muito novas, tomávamos nosso copo de leite com achocolatado, bem mexido, sem uma bolinha sequer flutuando despropositadamente na superfície daquele copo gelado. Éramos buscadas na porta de casa, ela de uniforme verde e eu vermelho; a diferença representava os 3 anos que nos dividiam, a rádio sintonizada na Metropolitana, na época transitando entre hits de “Pussycat Dolls” ou clássicos sertanejos da Paula Fernandes, preferência do “tio” Henrique. Foi logo de cara, no primeiro banco em que coloquei o cinto de segurança sob o short do uniforme do colégio e minha mochila laranja do Scooby-Doo ao chão, que meus pés sequer alcançavam, que conheci o Matheus, diferente de mim: Gyorfy.
Quais as chances? Uma mesma perua, duas crianças, o mesmo nome. Não apenas o primeiro, como também o segundo. Não satisfeito, o universo colocou outros dois “Matheus” para tornar a equação mais complexa. Sob as mesmas circunstâncias dos dois primeiros, sobrou para os demais apenas o último nome: Elisei, Gyorfy, Piccolomini, Alves.
Para Matheus, nada.
Ao conhecer o Matheus pela primeira vez, nos tornamos grandes amigos. Meu primeiro grande amigo. Nos víamos todas as manhãs, sentávamos juntos em cada passeio e, no recreio, criávamos nossas brincadeiras enquanto compartilhávamos a merenda da vez.
Inconcebível existir coincidência grande o suficiente a colocar dois Matheuses frente a frente dessa maneira - e, ao considerar o desenrolar da nossa cumplicidade, em algum lugar infantilmente já sabíamos valorizar esse acaso.
Digo que fui Elisei antes de me reconhecer Matheus porque a percepção do outro teve uma interferência muito mais significativa do que o que me foi registrado. Para os amigos que eu queria conquistar, eu era Elisei; para as professoras que busquei impressionar, eu era Elisei. Dessa forma, aos poucos, criei carinho profundo por ser algo que não Matheus.
Comecei a saborear, enfim, em pequenas doses aperitivas, o que eu era capaz de criar. Quem eu era capaz de ser a partir da diferenciação. Imaginação. Qual era o limite para a invenção desse ser?
No meu caso, algo que não Matheus. Elisei sempre foi inventivo, necessita soletrar. E, L, I, S - isso, é com esse - E, I. Elisei. A confusão desde então me divertia; a atenção necessária para decifrar a miscelânea linguística que se construirá ao longo das décadas garantiu anos de entretenimento.
Percebo em retrospecto que meu exercício de emancipação e renomeação esteve de fato sempre vivo e efervescente em mim desde esse primeiro encontro. Por isso digo que fui Elisei antes de me reconhecer Matheus. Afinal, apenas me encontrei com ele quando me decidi Marina.
Ao longo desse primeiro ano de transição, na verdade, tenho esbarrado no Matheus muito mais do que a soma dos meus 27 anos. Eu havia o guardado em um canto que não acessava e hoje me vejo frente a frente em inúmeras instâncias, eu e ele.
No prontuário médico, na cidadania emitida, nos documentos a serem retificados, em casa.
Anos após seguir caminhos continentalmente distintos do meu primeiro Matheus, somos dois novamente. Por obra do destino, me deparei agora morando com um Matheus.
Para o Matheus, tudo.
Mesmo após tantos anos comigo, nunca havia tido tanto em comum com Matheus. Os hobbies inusitados, a arte despretensiosa, o humor afiado como uma navalha - à semelhança tomando forma nos detalhes que embalavam de forma peculiar cada experiência.
Novamente, não precisei ser Matheus; afinal, ele tão pouco era. Batista. A história se repete, talvez como reflexo de uma maternidade pouco criativa dos anos 90 ou mesmo a falta de inventividade da juventude dos anos 2000, que fazia do sobrenome seu título. Matheus ficou sobrando.
Aos poucos, mas em grandes quantidades, fui entregando o Matheus. Seja celebrando a antiga fixação com Scooby-Doo, a nata paixão pelo videogame, a obsessão pelos mais diversos quadrinhos ou até mesmo as estimadas roupas antigas que já não cabem mais à Marina.
Me vi criança. Vi o Matheus.
De certa forma, o Matheus segue vivo, perambula em vestimenta pelo centro de São Paulo, experimenta um novo perfume, outro corpo que revejo todos os dias perto, mas cada vez mais distante.
Sigo aprendendo a contornar Matheus e agora encho a boca para pedir que seja Marina.
Na recepção de cada prédio. No formulário de compra de cada site. Ao entrar no Uber. Quando confirmo o pedido do iFood.
Eu nunca lutei pelo Matheus - inclusive, sempre me distanciei do perfil combativo. Fugia.
Mas eu advogo pela Marina. Por acreditar que ela merece sim ser ouvida, ser querida, ser atendida. Por acreditar que todas as outras Marinas, ou como escolherem ser chamadas, merecem e precisam tanto quanto eu.
Tenho aprendido diariamente a lutar por essas 6 letras que agora compõem meu nome. Afinal, sempre preferi a harmonia dos números pares. 3 consoantes, 3 vogais. Equilibrado. Sonoro. Marina.
Conjuro algo que não sei ainda ao certo o que é até vê-la; ainda que míope e empobrecida, continuo a delinear na imaginação a maneira que a Marina se dá.
E por mais que eu afirme diariamente que seja Marina, percebo ao decorrer do processo que sempre será muito mais que apenas escolher. Não basta um chamado; são necessários gritos enfáticos, lágrimas marcadas, voz contundente para cortar ao meio todo o resto e manter a Marina próxima, livre, lúcida e presente.
Lembro então da vez que minha mãe me contou que, até o último momento na maternidade, houveram opções para o meu nome. Se eu fosse menina, Talita para combinar com a minha irmã, Tabata. Mas se fosse menino, haviam opções, muitas que não eram consensuais entre minha família: Thales, João Victor.
Eu já gostei de João Victor, até fantasiei como seria viver como ele, mas a verdade é que sempre fui apaixonada pela forma com que a primeira letra do meu nome se conecta com a segunda. Ma. Daqui em diante, mudo a percussão.
Para a Marina, tudo.
Demando o mundo.
Obrigada por ler a newsletter até aqui. Esse espaço tem sido enriquecedor para a minha percepção enquanto mulher e propor novas formas narrativas tem ornamentado muito positivamente esse processo.
“Uma newsletter sobre maquiagem”? Não, não. “Uma newsletter sobre a minha transição”.
Brincadeiras à parte, essa trajetória da beleza e meu encontro comigo mesma é concomitante e retroalimentada - mal posso esperar para encontrar lentes para formatar esse mix aqui na newsletter, por hora senti falta de falar do que tenho gostado de testar e o que tem me encantando na minha penteadeira, portanto inauguro duas seções para trocarmos sobre.
Vamos nessa?
{meu quarteto fantástico do momento}
isdin fusion water | eu tenho que confessar que minha relação com protetor solar não é das melhores, me falta consistência! isso por que diferente do meu hidratante ou desodorante, não me apeguei a um de fato com carinho até experimentar o fusion water - que delícia de textura e sensação na pele!! acho que encontrei meu protetor.
body yogurt de moringa | espetacular. não tem outra palavra. o toque do yogurt é absurdo no corpo, refrescante, perfumado e muito leve. me encantei pela linha, que também conta com perfume corporal e sabonete de banho. moringada!
be easy base tint com fps20 | abri mão de base tem um tempo, estritamente estava usando corretivo apenas nos olhos e para cobrir os machucados do laser na barba porém durante a gravação de um vídeo com o Z1 para o tiktok tive a oportunidade de conhecer esse tint da bauny e me encantar. é leve, suave e a aplicação é fácil com as mãos.
body butter josie maran | da minha última viagem para nova york vieram poucos produtos de beleza mas dentre eles esse hidratante me encantou pela embalagem, fotografia e escritas. é um mix de flerte com aquela piada do pavê. e para melhorar o perfume é baunilha, meu predileto.
e além disso meus momentos favoritos de beleza do mês (:
nos vemos na próxima, na sua caixa de entrada - um beijo. até.
Lindo texto. Linda transição. Quero saber mais sobre o diário de Marina ❤️
meu amor, se vc não transformar esses textos em livro, eu vou ficar muito chateada. amo vc <3